terça-feira, 4 de junho de 2013

Poupança e empréstimo a juros

Examina-se agora um dos assuntos mais característicos e mais controversos do pensamento social e do alcance concreto da ética calvinista. Ele ressalta o parentesco estreito, mas ao mesmo tempo a distância crescente, entre o Cristianismo reformado e o capitalismo, considerados em sua evolução histórica.

O reformador soube discernir de forma absolutamente nova, com referência às antigas concepções medievais, o papel útil e necessário, não só das trocas econômicas, como se acaba de lembrar, mas também das atividades financeiras, sob a condição, porém, de que estas fossem igualmente subordinadas a uma ética severa, assim como a uma legislação correspondente.
 
Calvino e Bucer são, com efeito, os primeiros teólogos cristãos da era moderna que, graças à grande perspicácia na análise dos mecanismos econômicos e inabalável vontade de submetê-los aos imperativos de ética que reflita a vontade de Deus, legitimaram moralmente a prática do empréstimo a juros. Cercaram-no, porém, de muitas precauções e restrições, a fim de impedir que se transforme em fonte de destruição das relações sociais e das liberdades humanas. Recomendaram ao legislador assegurar, mediante lei, essa autoridade, para evitar que a liberdade desenfreada de uns destrua a preciosa liberdade dos outros.

Em conformidade com o método reformado, Calvino interroga a Bíblia para conhecer os desígnios de Deus nessa matéria.

Constata que os juros nela são severamente condenados. Por quê?

Trata-se, em primeiro lugar, de prevenir abusos da humanidade desnaturada, sempre ávida por lucros, seja qual for o preço pago pelos mal-aquinhoados. Por isso o ensinamento bíblico recomenda prioritariamente o empréstimo desinteressado, isto é, o empréstimo sem remuneração. Quem pode sair em socorro de alguém em dificuldade, mediante empréstimo pecuniário, deve fazê-lo sem pactuar juros. É empréstimo gratuito, sinal autêntico do amor, fruto da fé naquele cujo amor é gratuito. Assim, o lucro auferido de empréstimo assistencial é usura injusta, doutrina o reformador.

Que lição, transposta para a atualidade, a propósito de nossas relações atuais entre nações ricas e nações pobres, e entre países credores e países devedores! Devemos também extrair daí ensinamento pessoal.

Calvino questiona, em seguida, sobre a extensão que convém atribuir à interdição bíblica dos juros. Aplica-se ela a todas as formas de juros?

Para responder a esta questão, o reformador não se contenta, de modo algum, com um literalismo muito freqüente na interpretação das Escrituras, que consiste em repetir determinada prescrição bíblica aplicando-a pura e simplesmente a situações históricas novas. Analisa a realidade econômica contemporânea e compara-a com a antiga economia dos tempos bíblicos. E constata: quando a Bíblia fala de juros ou de usura, não se refere ao fenômeno relativamente recente do empréstimo produtivo. Na economia a longa distância, a economia atlântica em pleno desenvolvimento no início do século XVI, importa distinguir o empréstimo assistencial do novo tipo de empréstimo que exige a expansão dos mercados. Um empréstimo produtivo é um capital necessário à realização de um trabalho remunerador. Se, por exemplo, argumenta Calvino, empresto a um agricultor terra para que a cultive para seu benefício, o aluguel que obtenho desse empréstimo não é a remuneração de um empréstimo assistencial. Não lhe inflijo prejuízo algum exigindo esse aluguel. Retirará essa importância da receita oriunda do trabalho executado graças ao empréstimo dessa terra. Reparte comigo essa receita (à taxa pactuada). Por que não se daria a mesma coisa com o lucro daquele a quem empresto capital que expandirá com seu empreendimento?

A tradição antiga assumida pela Igreja Romana condenava qualquer interesse porque, dizia Aristóteles, "o dinheiro não produz dinheiro". Calvino propõe distinguir entre empréstimo para o consumo que, sendo empréstimo assistencial deve ser gratuito, e empréstimo para a produção, gerador de novos produtos. Além disso, nota-o, proibindo-se quaisquer juros, dissuadem-se os emprestadores honestos, úteis ao desenvolvimento econômico legítimo, e estimulam-se involuntariamente os usuários que se aproveitam de tal interdição para aumentar seus lucros, por causa dos riscos adicionais que correm.

Dito isso, Calvino não cerra os olhos para os perigos de liberalização indiscriminada do empréstimo a juros. Discerne ao contrário, de maneira profética, todos os abusos que a humanidade desnaturada, pouco preocupada com o respeito a uma ética adequada, pode extrair de uma liberdade abusiva nesse domínio. Cerca, também, sua legitimação dos juros com numerosas restrições.Trata-se de eliminar os abusos sempre ameaçadores do poder do dinheiro, abandonado a uma liberdade desenfreada, em particular com relação aos trabalhadores, cujo trabalho se acha na origem do ganho realizado pelo capital emprestado.

Shalon  !!!

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