segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O marinheiro

Nas coordenadas 37 graus a sudoeste e 20 graus a nordeste, mar alto, navega um homem de 53 anos. Desatento ao caminho do vento, medita. Está só. Vez por outra seus lábios se movimentam. Com a barba grisalhada de três dias, o marujo conversa. Não se dá conta de que não há ninguém para ouvir o monólogo. Ele precisa falar consigo mesmo. Na aspereza das ondas, sabe: há mais oceano a navegar dentro da alma do que adiante, no azul infinito.
O sol arde, inclemente. O tripulante solitário parece não importar-se com a falta de norte. A pino, com raios perpendiculares, o sol nega a existência de lados. Ali desaparecem bifurcações, esquinas, encruzilhadas. Nas vastidões, não se escolhem atalho, senda, caminho. Só o rumo do nariz serve de bússola. Tudo é, ao mesmo tempo, ocidente e oriente.
Ele deriva? Não. O universo também se expande. Quem conhece a rota das galáxias? Para onde vamos todos? O timoneiro ignora qualquer imperativo. Na ausência de opções gasta o tempo em lixar as pontas agudas de um passado que insiste em não desaparecer – chamamos essas pontas de saudade. Ele sabe que as pontas agudas da saudade podem pesar como âncora. E entre a âncora da culpa e a quilha da coragem, melhor afiar a quilha.
Súbito, o vento sopra. A tormenta se intromete, veemente. Os arredores enegrecem. O dia passa de incandescente a anêmico. A noite se impõe, ligeira. Resta ao velejador sair de seu estado contemplativo. Não há rota de fuga. Ele tem de encarar a tormenta. A sobrevivência é mãe da coragem.  De joelhos, remenda a vela – é preciso, antes que se rasgue toda.
Uma melancolia, também súbita, vaza dos olhos, da pele, das mãos trêmulas. Mas a tristeza do marinheiro engana. Sob a pele, o homem se reveste de obstinação. Os olhos se mexem, ariscos. Ele se agiganta. Da vaga espumejante empluma-se. É Fênix. Já não se percebe qualquer balbuciar nos lábios. Nada fala porque precisa de silêncio interior – matéria prima da ressurreição. Desdenha raios e trovões. Entesa os ombros. Altivo, olha para cima – parece querer achar alguma estrela desobediente.
Mas uma dor intermitente, daquelas que assaltam os valentes, arqueia as sobrancelhas do homem que ousou navegar. De resoluto, vê-se abatido. O mar se encrespa. A possibilidade de chegar ao porto se distancia. E esperança passa significar o dever de continuar. O mar salgado se confunde com o sal das lágrimas, que por sua vez combina com seu suor; e nessa abundância de sódio, fica a resolução: seguirei.
Que outra sentença merece esse homem senão: Deixe-o em paz, ele navega rumo ao seu ''destino''

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