É isto que quer dizer inferno: esta união-na-alienação com o fundo do nosso ser, uma inevitável ausência de Deus numa inevitável relação para com Deus’.
Por outro lado, é a união-no-amor com o fundo do nosso ser, como a encontramos em Jesus Cristo, é isso que chamamos céu. E é à oferta desta nova vida, em toda a sua divina profundidade, capaz de vencer o afastamento e a alienação da existência tal como nós a conhecemos, que o Novo Testamento chama de ‘nova criação’. Esta nova realidade é transcendente, está ‘para além’ de nós, no sentido de que não nos compete a nós dirigi-la.
Todavia, dela temos experiência, como o Filho Pródigo, quando ‘regressamos a nós’. Porque é um regresso ao lar, ou, antes uma recepção dentro do lar, onde descobrimos tudo aquilo que fomos criados. É o que o Novo Testamento designa apenas por uma palavra – Graça … Tillich fala dela duma forma que mostra bem como é destituída de quase todo o sentido num contexto de categorias puramente naturalistas, e como, por outro lado, está ‘mais perto de nós que nós mesmos’: porque é o nosso ‘novo ser’.
Todavia, não podemos querê-la por nós mesmos: ‘Acontece, ou não acontece. E certamente não acontece se procurarmos impô-la a nós mesmos, assim como tão pouco acontecerá enquanto pensarmos, na nossa autocomplacência, que não temos necessidade dela.
A Graça atinge-nos quando avançamos através do vale obscuro duma vida absurda e vazia. Atinge-nos quando sentimos que a nossa separação é mais profunda do que nunca fora, porque violamos uma outra vida, uma vida que amávamos, uma vida de que nos alienamos. Atinge-nos quando o desgosto que sentimos por nós mesmos, a nossa indiferença, a nossa fraqueza, a nossa hostilidade e a nossa falta de direção e de serenidade se nos tornaram intoleráveis. Atinge-nos quando, ano após ano, não se alcança a tão anelada perfeição de nossa vida, quando os velhos hábitos nos escravizam ao longo de décadas, quando o desespero destrói toda a alegria e toda a coragem.
Algumas vezes sucede que, nesse momento, uma vaga luz rompe a escuridão da nossa noite, e é como se uma voz nos dissesse: ‘Foste a aceito. Foste aceito por algo que é maior do que tu e cujo nome tu desconheces. Não te preocupes como saber-lhe o nome agora; talvez o descubras mais tarde. Não procures fazer coisa alguma agora, talvez mais tarde faças muito. Não busques nada; não realizes nada; não pretendas nada. Simplesmente aceita o fato de seres aceito!’.
Se tal nos acontece, passamos pela experiência da Graça. Depois dessa experiência, podemos não ser melhores do que antes, podemos não acreditar mais do que antes. Mas tudo é transformado. Nesse momento, a Graça conquista o pecado, e a reconciliação preenche o fosso aberto pela alienação. E nada se requer dessa experiência, nenhuma prévia adesão religiosa ou moral ou intelectual: requer-se apenas a aceitação.
‘À luz desta Graça percebemos o poder da graça nas nossas relações para com os outros e para conosco mesmos. Experimentamos a graça de sermos capazes de olhar francamente nos olhos os outros, a graça miraculosa da união da vida com a vida. Conhecemos a graça de compreendermos as palavras dos outros, de nos compreendermos uns aos outros. Compreendemos não apenas o sentido literal das palavras, mas também o que se esconde por detrás delas quando são duras e irritadas. Porque mesmo então palpita o desejo de romper os muros do isolamento.
Experimentamos a graça de sermos capazes de aceitar a vida dos outros, mesmo que nos seja hostil e nociva, porque, pela Graça, sabemos que essa vida pertence ao mesmo fundo a que nós pertencemos e pelo qual fomos aceitos. Experimentamos a graça que é capaz de vencer a barreira trágica dos sexos, das gerações, das nações, das raças, e mesmo a mais completa separação entre o homem e a natureza. A Graça aparece, por vezes, em todas estas separações para nos reunir àqueles a quem pertencemos.
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